Ela se casou com o homem mais poderoso do mundo, tornou-se sacerdotisa de uma nova religião e acabou adorada como deusa. No fim da vida, governou sozinha o maior império de seu tempo.
Poucas vezes durante os quase 10 mil anos da história da humanidade a pessoa mais poderosa do mundo foi uma mulher. No Egito do século 14 a.C., no entanto, uma bela rainha que se tornaria deusa, liderou o mais poderoso império sobre a terra. E por quase 20 anos, Nefertiti foi a pessoa mais poderosa do planeta.
O ano era 1348 a.C. e o Egito encontrava-se em sua 18ª dinastia, uma época de prosperidade e riqueza, sustentadas pela relações comerciais com os vizinhos da Mesopotâmia e da Ásia Menor. Era um tempo de paz, quando a diplomacia egípcia evoluiu a ponto de surgirem impensadas alianças com povos antes belicosos, como o reino Mitani. Mas, se da cerca para fora tudo parecia tranqüilo, em casa um furacão se formava. No quarto ano de seu mandato, o faraó Amenhotep IV tomou a decisão que mudaria a história de sua vida e alteraria completamente a doce vida no Egito.
Amenhotep IV assumiu aos 16 anos a co-regência de seu país ao lado de seu pai no 28º ano de reinado de Amenhotep III. Em 1352, após a morte do pápi, ele iniciou carreira solo e, aos poucos, foi colocando as manguinhas de fora. Sem grandes explicações, o novo faraó resolveu substituir o culto ao deus Amon-Ra, o mais importante da época, pela adoração ao deus-sol Aton, representado simplesmente pelo círculo solar. Trocou seu nome para Akhenaton e proclamou-se o enviado do novo deus, em cuja homenagem mandou erigir uma cidade sagrada, Akhetaton, conhecida hoje como Tell El-Amarna, e para lá transferiu a capital do Egito, para desespero dos sacerdotes de Karnak. Antes, avisou: “Ninguém, nem mesmo minha esposa, me fará mudar de idéia”.
Mulher do rei
A influente esposa citada nos discursos do faraó – fato raríssimo para a época, e que, por si só, já demostra a importância da rainha – era Nefertiti. Não se sabe exatamente quando, nem onde Nefertiti – nome que significa “é chegada a bela” – nasceu. É possível que Ay, um alto funcionário de Amehontep III, pai de Akhenaton, fosse o pai da moça e que ela tenha tido algum grau de parentesco com a rainha Tiye, mãe de Akhenaton e mulher muito influente na 18ª dinastia.
De acordo com o egiptólogo (historiador especializado em antigo Egito) Antonio Brancaglion Junior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), embora haja quem acredite que Nefertiti veio do reino de Mitani para o harém de Amenhontep III, herdado por Akhenaton, há evidências de que Nefertiti era egípcia. “Isso se reforça pela tese de que Tiye e Nefertiti fizeram uma aliança: a primeira teria escolhido a segunda para ser esposa de seu filho e assim continuar tendo influência no reinado de Akhenaton, após a morte do pai dele”, diz Antonio.
Nefertiti só passa a existir oficialmente após seu casamento com Amenhotep IV, quando ela tinha 14 anos. É quando começa a aparecer eminscrições em estelas e talatats, pequenos blocos de pedra, a base das construções egípcias. Uma das duas mulheres de Akhenaton – a principal, que possuía o título de Grande Esposa Real –, Nefertiti começou sua história como esposa e rainha, mas, ao longo do tempo, sua influência foi aumentando. “Na implementação da nova religião que cultuava Aton, Nefertiti teve um papel fundamental”, diz a historiadora Anna Cristina Ferreira de Souza, que em 2004 defendeu sua tese de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) justamente sobre o caráter divino de Nefertiti. Esse fato pode ser visto nas imagens da rainha gravadas nas paredes dos templos em Amarna – entre Tebas e Mênfis, a 590 quilômetros do atual Cairo. A princípio, Nefertiti aparece bem menor que Akhenaton. Com o tempo, no entanto, ela vai ficando cada vez maior, até alcançar o tamanho do marido – uma indicação de que seu status foi também subindo com o passar dos anos (veja quadro ao lado).
Sacerdotisa de Aton
O crescimento atípico da rainha, ao lado do faraó e à frente de seu povo, é costumeiramente associado ao papel de Nefertiti na nova religião criada pelo marido. Pela primeira vez, o deus egípcio era único. Mas, para entender a mudança de religião proposta por Akhenaton e o papel de Nefertiti nessa alteração, é preciso voltar ainda mais no tempo. Até então, a religião do Egito era formada pelo culto a diversos deuses, cujos representantes na Terra eram os próprios faraós. A origem da crença remonta à pré-história, quando tribos locais adoravam deuses e animais. “Eles acabaram sendo incorporados e até superpostos por outros cultos locais, dando origem à religião egípcia”, afirma Anna Cristina. Vários deuses, que apresentavam características masculinas e femininas, eram cultuados, numa forma de politeísmo, mas cada um de uma vez – o que era conhecido como monolatria.
Quando ainda era chamado Amenhontep IV, o faraó já dava indícios de sua nova fé: começou a levantar templos para Aton na cidade de Karnak, lugar de adoração de Amon-Ra. Até que oficializou o culto ao disco solar e ordenou o abandono do antigo deus. No quinto ano de seu reinado, começou a construção da nova capital, Akhetaton, o “Horizonte de Aton”, que ficou pronta três anos depois. A relação com os outros deuses, a partir de então, estava rompida. Segundo Anna Cristina, seria como se alguém hoje proibisse que os católicos adorassem seus santos.
Nefertiti não usava o título de “esposa do deus” – função sacerdotal banida pela nova religião, que era exercida por mulheres virgens da alta nobreza e cujo papel estava relacionado ao nascimento divino do rei: de acordo com a mitologia, o deus Amon-Rá mantinha relações sexuais com a rainha virgem e, assim, gerava o novo rei –, mas assumiu uma posição equivalente como sacerdotisa do culto diário. Entre as funções que desempenhava, ela acompanhava cortejos religiosos e fazia oferendas. “Nefertiti contava com grande empatia e carisma entre a população, dando alguma popularidade ao culto de Aton, que foi combatido pelos poderosos sacerdotes egípcios que preferiam os deuses tradicionais”, afirma a historiadora Deborah Vess, da Universidade de Geórgia, nos Estados Unidos, especialista em mulheres da Antigüidade. “Sua beleza, combinada com o poder que ela adquiriu durante o reinado de Akhenaton e em sua nova religião, a tornou uma das mulheres mais importantes da história”, diz. As outras rainhas foram simplesmente rainhas. Nefertiti não: ela virou uma deusa encarnada.
Deusa do sol
Akhenaton elevou a si mesmo e sua esposa à posição de deuses vivos. A alteração se deu aos poucos. A princípio, o deus-sol Aton era representado com corpo humano e cabeça de falcão. Com o passar do tempo, porém, a iconografia foi substituída por imagens da família real, que estava sempre recebendo sagradas emanações do disco solar. “Houve uma simplificação na hierarquia dos deuses do Egito: só subsistiram as figuras de Aton e do rei, que era o único meio de acesso à esfera divina”, afirma Anna Cristina. “Os cultos privados passaram a ser direcionados à família real, pois só esta conhecia e podia cultuar o deus.” De acordo com essa liturgia, Nefertiti assumiu papel de protagonista da história, pois encarnava todas as deidades femininas que os egípcios estavam acostumados a cultuar.
“Nefertiti foi certamente uma semi-deusa”, afirma Joyce Tyldesley, autora de Nefertiti – Egypt’s Sun Queen (“Nefertiti, a Rainha-Sol do Egito”, sem tradução para o português). “A religião de Akhenaton era muito diferente de tudo o que havia existido até então. O novo deus egípcio era um simples disco solar. Akhenaton precisava de um elemento feminino nessa religião, e usou Nefertiti para esse fim.”
O poder do Egito, um reino em que religião e política se misturavam, antes concentrado nas mãos dos sacerdotes de Amon, passou a ser exclusivo do casal real. “É provável que o status assumido pela rainha tenha ocorrido devido a essa concentração de poder na própria família real”, afirma Anna Cristina – para quem Nefertiti chegou a ser considerada uma deusa viva. “Ao ser retratada com a família, a maioria das cenas relaciona Nefertiti à deusa Tefnut, o que eleva seu status à deusa encarnada, uma verdadeira revolução.”
A família real passou a ser bastante retratada no reinado de Akhenaton. São comuns estelas nas quais Nefertiti aparece ao lado do marido com suas filhas (eram seis ao todo). Cenas inéditas de carinho e intimidade são mostradas: Nefertiti beija o marido, acaricia as filhas, alimenta a prole. “O casal aparece muito junto, em cenas cotidianas, se acariciando. Isso nunca havia sido visto antes”, afirma o egiptólogo Julio Gralha. “A época de Amarna foi intrigante: além do culto mais próximo ao monoteísmo que o Egito já viveu, ela também expôs como nunca a vida cotidiana dos poderosos.”
As mudanças promovidas por Akhenaton foram radicais. De fato, desde o início elas atraíram a oposição dos poderosos sacerdotes. “Quem foi esperto e mudou de religião teve seu emprego garantido”, diz Antonio Brancaglion. “Quem não o fez, acabou perseguido, preso e, às vezes, banido.” Com o tempo, a insatisfação chegou à nobreza, incomodada pela extrema concentração de poder na figura do faraó e de sua família e, finalmente ao povo, afetado pela construção da nova cidade que levou ao aumento de impostos e inflação.
Além disso, o faraó não tinha a menor vocação para a guerra ou a política. Durante seu reinado, o Egito perdeu seus territórios na Ásia para os hititas, o que solapou a coleta de ouro e de impostos. Diante das críticas ao seu governo, Akhenaton reagiu com mais perseguição religiosa e enviou mensageiros a Tebas e Mênfis para destruir qualquer menção a outros deuses que não Aton.
Sozinha no poder
Esse era o clima, em 1336 a.C., quando Akhenaton morreu provavelmente de causas naturais, aos 34 anos – a média de vida dos egípcios daquela época, mesmo entre a elite, era de apenas 35 anos. Nessa época, as imagens de Nefertiti mostram-na usando paramentos típicos de faraó, como coroa e bastões. Para a maioria dos especialistas, o fato sugere que ela teria assumido o trono do Egito, primeiro ao lado do marido e, depois da morte Akhenaton, sucedendo-o. “Embora o assunto permaneça controverso atualmente a opinião de que ela tenha governado como rainha única é cada vez mais aceita”, diz Antonio Brancaglion.
Gravações em pedra encontradas em escavações no século 19 em Amarna mostram que, após a morte de Akhenaton, o Egito foi governado por um (ou uma) faraó de nome Nefernefruaton – que seria, na verdade, Nefertiti. A rainha teria governado como co-regente de Akhenaton após o 13º ano de seu reinado – quando o nome “Nefertiti” desaparece das inscrições em Amarna.
Para Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antigüidades Egípcias, não restam dúvidas sobre o poder acumulado por Nefertiti após a morte de Akhenaton. “As imagens de Amarna mostram a rainha sozinha, liderando procissões religiosas e até à frente de exércitos, posições reservadas exclusivamente aos faraós”, diz Hawass. Um dos fatos que reforça a hipótese de Nefertiti ter chegado ao mais alto cargo no Egito é que Nefernefruaton é justamente uma variação mais longa de seu nome. Além disso, vários documentos sugerem que o sucessor de Akhenaton tenha sido uma mulher.
Por outro lado, críticos à tese de que Nefertiti tenha governado sozinha o Egito apontam o fato de que o sucessor de Akhenaton tenha revogado quase tudo que o faraó fez durante seu reinado – o culto a Aton, por exemplo, foi extinto e os antigos deuses retomados menos de cinco anos após sua morte – para sustentar a hipótese de que o sucessor tenha sido outra pessoa. Afinal, por que Nefertiti abandonaria a religião do marido?
Anna Cristina Ferreira de Souza tem algumas hipóteses. “Akhenaton deixou o Egito em crise e após sua morte, vários setores da sociedade se revoltaram contra o trono. O retorno ao culto a Amon-Ra deve ter sido uma forma que a nova faraó encontrou para contar com o apoio do maior número possível de pessoas e pacificar o país”, diz. Segundo a especialista, isso justificaria o fato de Nefertiti ter trocado seu nome e tentado romper os vínculos com o antigo regime. “Foi uma decisão importante, tomada por uma mulher que tinha exata noção de seu papel na política do Estado.” O egiptólogo Antonio Brancaglion, concorda que a motivação de Nefertiti deve ter sido política. “Ela provavelmente percebeu que a nova religião estava levando o Egito ao colapso”, afirma.
Apesar disso, Nefertiti não conseguiu deter a crise religiosa e social que levou o Egito a um período de instabilidade política. Depois de apenas três anos de poder, ela teria morrido em situação nunca esclarecida. O Egito passou a ser governado pelo jovem Tutancâmon, que assumiu com cerca de 9 ou 10 anos e morreu assassinado aos 18 anos. Para quem acredita que Nefertiti terminou seus dias como a poderosa rainha do Egito é difícil aceitar que seu corpo jamais tenha sido localizado – embora uma especialista americana tenha afirmado, em 2003, que a achara. Para explicar o desaparecimento, no entanto, é preciso lembrar que durante o governo de Tutancâmon, Amarna – provável local do sepultamento da rainha – foi abandonada. Os crentes de Aton foram perseguidos e a maioria dos templos construídos por Akhenaton e Nefertiti depredados. Os rostos dos soberanos foram raspados das imagens esculpidas em pedra. É possível que, nessa época, a tumba da rainha tenha sido violada.
Silêncio eterno
Se Nefertiti não reinou como faraó, a outra hipótese é que ela tenha morrido no 14º ano de reinado do marido, quando seu nome desapareceu dos documentos oficiais. “Acredito que a esposa de Akhenaton foi enterrada na tumba real em Amarna, como previsto desde a época da construção da cidade”, afirma Joyce Tyldesley, que estuda as ruínas de Amarna há mais de 20 anos. “Essa tumba foi saqueada na Antigüidade, e novamente no século 19. Muito pouco foi recuperado dela. Mas há uma chance de que a múmia tenha sido resgatada quando Amarna foi abandonada. Nesse caso, ela poderia estar numa tumba do Vale dos Reis, em Tebas.”
Embora o período amarniano seja um dos mais estudados do Egito antigo (há mais de 2 mil livros publicados sobre a época), não há ponto final quando o assunto é Nefertiti. “Desde a descoberta de seu famoso busto, exposto hoje no Museu de Berlim, ela invadiu nossa imaginação”, afirma a historiadora Deborah Vess. “Sua beleza e o enorme poder que parece ter tido instigaram diferentes teses sobre sua vida e seu real papel na história do Egito.”
“Não sabemos quase nada sobre a personalidade dela”, diz Julio Gralha. “Alguns pesquisadores a tratam como mãe devotada e esposa carinhosa, agradável ao público. Outros a tem como uma mulher ambiciosa, poderosa, capaz de matar para ficar no poder.” Há quem defenda a tese de que Nefertiti chegou a matar Kiya, a segunda esposa de Akhenaton e mãe de Tutancâmon, só porque ela teria dado ao faraó algo que a rainha nunca conseguiu dar: um filho homem. Outros acham que foi a própria Nefertiti a cabeça da revolução religiosa que dividiu seu país e o levou à beira do colapso. Há ainda uma versão da história que afirma que Nefertiti não era o faraó sucessor de seu marido – e, sim, sua assassina.
Talvez as respostas para esses e outros enigmas só surjam quando o grande depósito de talatats encontrado em Amarna no século 19 for inteiramente decifrado. O que ainda pode levar décadas. Talvez não apareçam nunca e, então, Nefertiti terá levado seus segredos para a eternidade.